03 outubro, 2009

Reflectindo



Leitura dos Textos Litúrgicos
Não separe o homem o que Deus uniu


1.ª Leitura (Gn 2, 18-24): “Osso dos meus ossos e carne da minha carne”A razão da escolha desta Leitura está na citação directa que dela faz Jesus no Evangelho de hoje. Pertence ao chamado relato javista da criação do homem (Gn 2). Trata-se de uma narração sobre as origens que pretende remontar às condições fundamentais e originárias da existência humana. Este quadro situa-se antes do pecado e, por isso, apresenta-se tecido de harmonia e de luz: é assim o projecto de Deus que o pecado ofuscará de forma trágica sem, contudo, o abolir. Algumas anotações:- Para Deus, a "solidão" do homem é um "mal" a que quer dar remédio com a sua acção criadora. Só mediante a vida em comum podem os seres humanos alcançar a plenitude do seu ser.- Os animais constituem uma ajuda para o homem, mas não se encontram ao seu nível, não podem entrar em diálogo paritário com ele.- A imagem da "costela" significa que o homem e a mulher são formados da mesma substância. Implica igualdade de natureza. A expressão proverbial "osso dos meus ossos e carne da minha carne" significa, precisamente, parentesco e pertença mútua.- Sublinhe-se, finalmente, a paridade absoluta entre homem e mulher e a complementaridade dos dois sexos. Será o pecado a introduzir a desigualdade. Em hebraico "homem-mulher" são o mesmo vocábulo declinado no masculino ou no feminino: ishisshah. Entre ambos estabelece-se uma verdadeira homogeneidade, uma comunhão tão íntima que faz deles uma só existência: "uma só carne".
2 Leitura (Heb 2, 9-11): “Era necessário que experimentasse a morte em proveito de todos” Dá-se início neste Domingo a uma leitura antológica da chamada "carta aos hebreus", obra por vezes atribuída a Paulo. Na verdade trata-se de uma magnífica homilia cristã de autor anónimo, muito elaborada literária e teologicamente. Nesta passagem, que pertence à introdução, o Autor compara Jesus aos Anjos, acabando por afirmar a Sua superioridade não obstante ele ter aparecido por um pouco "inferior aos Anjos", segundo a expressão do Sl 8 relido em chave cristã. Note-se a identidade profunda entre esta cristologia e a do célebre hino pré-paulino de Fl 2, 6-10. O Autor vê na incarnação o gérmen da Páscoa em que Cristo é instaurado na sua função de Sumo Sacerdote, Salvador e Intercessor. A expressão "levasse à glória perfeita" melhor se traduziria por "tornasse perfeito" (v. 10). Trata-se dum verbo típico da consagração sacerdotal. Na paixão Cristo torna-se homem no sentido mais pleno (cf. 5, 8-9) desempenhando assim de forma eficaz a mediação sacerdotal (e superando também nesta dimensão, a condição dos Anjos). Ao mesmo tempo Hb realça a íntima relação de pertença que existe entre Jesus Cristo e a humanidade inteira.Evangelho (Mc 10, 2-12): “Pode o homem repudiar a sua mulher?”O Evangelho deste Domingo insere-se no início do itinerário percorrido por Jesus no território da Judeia a caminho de Jerusalém. Nesta caminhada sucedem-se disputas acaloradas (sobre o divórcio, sobre a sua autoridade, sobre o tributo a César, sobre a ressurreição dos mortos, sobre o primeiro mandamento), num crescendo que culminará na hostilidade declarada e na crucifixão. Não se trata, pois, de debates académicos mas de confrontos em que a tensão dramática permeia toda a controvérsia. A questão do divórcio e das condições em que ele seria legítimo contrapunha as escolas rabínicas: os discípulos de Shammai só o aceitavam em caso de adultério da mulher, enquanto que os seguidores de Hillel admitiam como suficiente qualquer motivo, ainda que fútil. Jesus, porém, não se deixa enredar nestes debates entre escolas indo antes à raiz da questão. Começa por vincar que a cláusula do Dt 24, 1 não tem o valor de preceito mas tão só o de concessão perante a "dureza de coração", isto é, a incapacidade humana de entender e fazer a vontade de Deus. Mas Jesus vai ainda mais longe, remontando ao desígnio do Criador antes do pecado: "No princípio...". Nenhuma lei posterior pode invalidar essa vontade originária. Note-se, finalmente, que, segundo S. Marcos (e ao contrário da mentalidade dominante no tempo de Jesus), o homem e a mulher são postos no mesmo plano: os direitos são iguais e comete adultério quem os viola, independentemente do seu sexo.