29 março, 2008

Uma cama só para você ?

Quando acordamos pela manhã, levantamo-nos da cama quentinha, fazemos todo aquele ritual higiénico, tomamos um café delicioso, vamos para um trabalho digno, almoçamos e continuamos naquela rotina, nem imaginamos que do outro lado, existem pessoas que fariam de tudo para ter essa rotina, para ganhar um pouco de dignidade e respeito.
Quase ninguém valoriza a vida que tem e que leva até conhecer a outra face desta mesma vida.E como é bom saber que somos privilegiados, que somos seres perfeitos, dotados de uma enorme riqueza que é a da saúde, da boa família, do carinho, do trabalho digno e da auto-estima elevada. Estou escrevendo esta mensagem porque a experiência que tive e estou tendo é tão grande e gratificante que vale a pena contar e dividir.Passei dois anos convivendo com crianças carentes de carinho e de teto que me ensinaram a maior das sabedorias que é transformar o pouco em muito, valorizar tudo o que se tem e amar o próximo sem distinção.
A primeira vez que ouvi frases do tipo:- Tia você tem uma cama só para você?- Porque Deus te deu essa vida boa e eu passo fome e sou espancado?- Sou pobre mas sou feliz, comi sopa ontem à noite... (era água com farinha).
Percebi que as minhas reclamações eram fúteis, sem cabimento. Quem era eu para exigir as melhores calças jeans, diversidade no almoço de todos os dias, viagem longa nas férias?
Meu Deus !!.., pensei, obrigada por eu ter uma cama (alguém já pensou nisso? É tão normal ter uma cama, não é ?).
Que direito eu tinha de falar que a minha vida ia mal em algum aspecto, que bom ter uma rotina, uma mãe para reclamar que a roupa não está arrumada, que todas as manhãs só tem pão com manteiga, doce, café, leite, bolo... Que vergonha..!! Mulheres reclamam por falta da máquina-lava-louça, do microondas último modelo, que a televisão da vizinha é mais moderna, mas esquecem que têm um teto, uma família, carinho e não passam fome nem frio.
Enfim os sentimentos de ganância, ambição, egoísmo, inveja, materialismo, sobrepõem aos de valorização, humildade, fraternidade, honestidade...
Haverá maneira para o mundo melhorar?
Para o país ir para frente?
Na mais recente visita a uma instituição ( Solidariedade), como membro do Projecto Criança, meu desejo foi cair prostrada de joelhos em agradecimento e, a minha vontade, transformar o pouco que eu faço, em muito.
Vi uma criança de cinco anos espancada, em casa, cheia de hematomas pelo corpo, totalmente aterrorizada e frustrada, sem aquele brilho no olhar característico das crianças activas e saudáveis.
Percebi a carência em seus olhos, a vontade de ser amada, de ver um sorriso de obter um "olá". Ela não queria uma casa grande, brinquedos sofisticados, andar no carro do ano e, sim, AMOR, carinho, compreensão, tanta coisa abstracta mas de infinito valor. Ela olhou-me nos olhos estendeu a mão e disse:-
Posso te dar um "abaço" ?-
Você me dá um "bezo" ?
Meu Deus.., pensei, o que eu preciso dar é tão pouco, não me custa nada.
Porque nós não cultivamos, não damos e não dividimos afecto?
Não precisa ter dinheiro para ajudar, nem tempo de sobra...Basta possuir a capacidade de amar sem distinção e exteriorizar isso, nem que seja com um sorriso, um aperto de mão, um muito obrigado.
O tempo todo que esta criança brincou ao meu lado, não demonstrou revolta, rebeldia nem mesmo agressividade, apenas gritava com o coração:
Dá-me uma oportunidade de ser feliz, de provar que sou um ser humano, que eu posso crescer, progredir...
Quando eu estava indo embora (já dentro do carro) em grandes reflexões, vi aquela pequenininha vindo em minha direcção e dizendo :-
Espele, espele,
ó... é pa vochê...!!!

...........................Era uma flor.